quinta-feira, setembro 02, 2004

OS IMORTAIS...

A certa altura de Os Imortais, o novo filme de António-Pedro Vasconcelos, há uma personagem que fala de «compaixão». Uma palavra que o realizador aproveita para dizer que Os Imortais é um filme «paulista». Como São Paulo, o santo, não a cidade brasileira.

O filme - baseado no livro Os Lobos não Usam Coleira, de Carlos Vale Ferraz -, passado em 1985, é sobre um grupo de ex-comandos que fizeram a guerra em África, que decidem, numa das suas reuniões anuais, assaltar um banco no Algarve, e são depois investigados por um inspector da PJ amante de fado e à beira da reforma. E por tudo isto, não parece prestar-se propriamente a interpretações religiosas. Mas Vasconcelos esclarece.

«Eu fui educado catolicamente. Depois descobri que não tinha fé e afastei-me da religião. Mas houve coisas que ficaram, sobretudo a figura de São Paulo. Tenho uma grande paixão por ele, até escrevi o prefácio a um livro do Teixeira de Pascoaes sobre São Paulo. Os Imortais é um filme 'paulista' sobre o amor, o amor no sentido de compaixão, isto é, de perceber o outro, de estar do lado dele. É nesse sentido que a personagem do Joaquim de Almeida, o Roberto Alua, percebe no fim que se calhar a compaixão é o mais importante de tudo. Este filme é muito pessoal e como toca em muitas personagens, idades e situações - o amor, por exemplo, é visto de várias maneiras - é talvez o meu filme mais completo, onde eu consegui dizer o que penso sobre o mundo, as pessoas - e também só o podia dizer agora, com a idade que tenho. O meu olhar é o da personagem do Nicolau Breyner, o inspector Malarranha, o pivô do filme, o polícia que sabe que há uma justiça imanente que acaba por fazer que as pessoas paguem pelo que fizeram. Podem não ser presas, mas pagam de uma maneira qualquer.»

Malarranha, Alua. O cinema português parece insistir em ter as personagens com os nomes mais inverosímeis de todos. António-Pedro Vasconcelos volta a esclarecer. «Os nomes das personagens já estão no livro, são muito curiosos. Um bocado como os das personagens da Agustina, que também são sempre estranhos. E a gente habitua-se aos nomes e já não os consegue mudar. Só mudei o da personagem feminina, interpretada pela Emmanuelle Seigner. Ela era Margarida e eu queria uma estrangeira, uma francesa Por isso, chamei-lhe Madeleine, pensando na Madeleine do Vertigo. Mas se forem ver, os nomes das personagens estão na lista telefónica.»
Assim, Roberto Alua (Joaquim de Almeida), Horácio Lobo (Rogério Samora), Vítor Pratas (Rui Unas) e Abel Cavaco (Filipe Duarte) são os imortais do título. E o que são os imortais? «Todos os grupos de comandos que combateram em África arranjavam nomes, como as repúblicas de estudantes. São heróis desempregados, foram formados para isso e deram-lhes uma causa. De repente, tiraram-lhes o tapete de debaixo dos pés. O Vale Ferraz queria chamar Os Imortais ao livro antes de se decidir pelo título que ficou», diz o realizador.

E do livro, Vasconcelos aproveitou «o enredo fundamental, as personagens e os nomes, como já disse. Isso, e a situação-chave, os tipos que voltam da guerra e tentam manter os níveis de adrenalina, reencontrar as motivações para que foram formados. Eles resistem à dispersão, à paz, à pasmaceira, como lhe chama o Malarranha. Perguntei ao Vale Ferraz se podia tomar liberdades com o enredo e ele foi fantástico, disse-me que fizesse o filme como bem entendesse. Mudei os desenlaces e o olhar sobre as personagens, que no livro eram completamente diferentes, uns falhados, até o Malarranha. Sendo um filme que não existiria sem o livro, é totalmente diferente no olhar.»

Contra a opinião de um dos seus amigos, António-Pedro Vasconcelos acha que Nicolau Breyner «é um grande actor, tão bom como o Al Pacino. E eu só podia responder a esse meu amigo, filmando o Nicolau». E falando em actores, para Vasconcelos, o elenco heterogéneo de Os Imortais, com gente de formações e hábitos diferentes, foi «um risco que valeu a pena. Nós não temos um leque de actores - e de actores de cinema - que nos permita uma escolha mais desafogada. Pelo outro lado, eu não poderia encontrar melhor. O Nicolau é extraordinário mas o Joaquim de Almeida não é menos bom. A Paula Mora faz um casal impecável com o Nicolau. O Unas era um risco porque não é actor, mas com o bigode, o cabelo um bocadinho grisalho, uns óculos, uma patilha diferente e aquele fato, é o Vítor Pratas. O Unas tem um olhar incrível, do malandro, do pintas. Dei-lhe dois ou três tiques e o resto ele foi buscar ao pai, que fez a guerra e era exactamente assim.»

Os Imortais , um projecto com quase 10 anos, foi «feito numa zona de risco», com um orçamento de 600 mil contos (além do ICAM e RTP, o dinheiro veio do Luxemburgo e Inglaterra), nove meses de rodagem e sete de montagem. «O nosso sistema não atrai financiamentos privados, do cabo, de distribuidores ou do vídeo», lamenta o cineasta. «O filme não foi fácil de fazer. Eu, com a idade, tenho mais experiência, mais calma e mais resistência para enfrentar as dificuldades. Por outro lado, tenho menos energia e inocência, já conheço os perigos e sou um bocado maníaco da perfeição. Mas um filme nunca é o que pensámos, o que queremos. Falta sempre alguma coisa.»

António-Pedro Vasconcelos faz uma pausa e acrescenta: «Nunca se faz o filme ideal. O que é gratificante são os actores. Muitas vezes, os actores são melhores do que aquilo que imaginámos.»

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